O passado é sempre conflituoso. A ele se referem, em
concorrência, a memória e a história, porque nem
sempre a história consegue acreditar na memória, e a
memória desconfia de uma reconstituição que não
coloque em seu centro os direitos da lembrança (direitos
de vida, de justiça, de subjetividade).
Beatriz Sarlo1
* UFRJ.concorrência, a memória e a história, porque nem
sempre a história consegue acreditar na memória, e a
memória desconfia de uma reconstituição que não
coloque em seu centro os direitos da lembrança (direitos
de vida, de justiça, de subjetividade).
Beatriz Sarlo1
Em Percursos (do luachimo ao luena), de Wanda Ramos (1980) e Corpo colonial, de Juana Ruas (1981), olhares pré-inaugurais tornam-se cognoscentes e revelam sujeitos em processo de reconfiguração identitária, no período de ocupação das colônias portuguesas ultramarinas, respectivamente, em África (Angola) e Ásia (Timor). Ao sugerirem uma outra ordem cultural do Império português que ruía, os relatos identitários fazem emergir vozes silenciadas e o espaço do imaginário e da reflexão – impensável pela censura salazarista na época referida. A textura do vivido, em condições extremas e excepcionais, leva-nos a questionar até que ponto, ao proceder à representação de seu percurso existencial, o “eu textual põe em cena um eu ausente, e cobre seu rosto com essa máscara”. “Como na “ficção em 1ª pessoa, tudo o que uma “autobiografia” consegue mostrar é a estrutura especular em que alguém, que se diz “eu”, toma-se como objeto”(ii). Implícita a esta questão, encontra-se a crítica à subjetividade e à representação, uma vez que todo relato autobiográfico se desenvolve buscando persuadir, como já nos apontavam Paul de Man(iii) e Derrida(iv). Este viés crítico, por sua vez, insinua que “o sujeito que fala é uma máscara ou uma assinatura, ao não pretender “ser sujeito verdadeiro do seu verdadeiro relato”(v). Partindo-se desse princípio, constata-se que as operações táticas da memória revestem-se de esquecimentos, lembranças, omissões, persuasão, seleção de fatos ou detalhes, passíveis de trazer o passado fantasmático e traumático para a cena do presente.